Um Mapeamento de Competências bem construído permite um alinhamento das metas e dos objetivos organizacionais e individuais, possibilitando que sejam propostas ações que permitam responder a demandas mais complexas do ambiente de trabalho. Além disso, ele é um processo que se relaciona com diversos outros processos dentro de uma empresa, ampliando as possibilidades de atuação nos diversos subsistemas da organização. Essa é a observação da psicóloga e administradora Marina Greghi Sticca, professora doutora da Universidade de São Paulo e pesquisadora na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT).
A conversa com a docente faz parte da continuação dos nossos conteúdos do blog sobre Mapeamento de Competências. (Caso queira saber mais sobre o assunto, você pode ler “O que é Mapeamento de competências” e “5 Benefícios do Mapeamento de Competências”).
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Qual o diferencial de uma gestão de competências em comparação a outros modelos de gestão?
O modelo de competências vem para dar conta de um novo cenário político, econômico e social. (Vem para dar conta) das relações da organização com esses sistemas, com a sociedade, com fornecedores e com acionistas. Ele vem também dar um posicionamento mais estratégico da área de recursos humanos. Temos o modelo francês que, além de estudar os conhecimentos, as habilidades e atitudes, vê isso na prática. (Vê) que o indivíduo manifesta essas competências no seu trabalho e que isso é importante.
Não adianta ter as competências, mas não manifestá-las. E o modelo possibilita trabalhar com competências que são observáveis e mensuráveis. Essa é a grande diferença. Com isso, você consegue identificar quais competências estão mobilizadas no seu agir, no trabalho.
Uma outra questão é alinhar competências organizacionais, que estão alinhadas com valores e com a missão, com as competências do indivíduo. Isso também vem para atender a uma pressão da organização perante a área de recursos humanos de ter resultados. De demonstrar a efetividade de suas ações e políticas. Então esse sistema de gestão por competências consegue auxiliar a área de recursos humanos a pensar ações e políticas que sejam integradas. A competência individual passa a estar totalmente vinculada com essas competências organizacionais. E isso em todos os subsistemas de gestão de pessoas.
Esse modelo foi pensado a partir da lógica de funcionamento de empresas em que os funcionários trabalham presencialmente. Pensando no momento atual de trabalho remoto, como o mapeamento se relaciona com esse tipo de vivência?
Se a pessoa tem as competências bem definidas, é possível identificar possíveis dificuldades que ela está tendo em relação a essas competências do teletrabalho e do trabalho compulsório e remoto. Mas o que a gente tem observado é que não é isso que está acontecendo. Não necessariamente a gente está falando das competências. Estamos falando de variáveis do contexto: da dificuldade de conciliar trabalho e família, de ter que fazer tarefas domésticas, da falta de contato. Isso não necessariamente tem a ver com as competências.
O que tem a ver com as competências é ter que dar conta dessas demandas e isso afetar seu desempenho. E aí o que acontece? É preciso que tenha um realinhamento dos gestores na distribuição de tarefas, repensar entregas, metas. Ter mapeadas as competências, facilita. Você consegue identificar todas as tarefas que aquela pessoa tinha que executar, o que pode ser redistribuído, no que pode ser dado mais autonomia, no que pode ser dado mais extensão de prazo.
Quando você não tem muito claro o que a pessoa faz e só (tem claro) o resultado, isso é complicado, porque você não consegue identificar tudo que é necessário que o indivíduo faça para que dê conta daquela demanda. O resultado final pode ser a entrega do relatório. Mas, para isso, a pessoa tem que saber usar o banco de dados, tem que ter acesso a informação, etc. Tem uma série de outras tarefas que você consegue identificar se tiver um mapeamento bem feito.
Então isso eu acho que é importante. Mas o que acontece é que nem as organizações mais tradicionais têm esse mapeamento bem feito. O que eles têm é uma descrição de cargos muito simples que não retrata essa complexidade das atividades que são realizadas. Assim, fica muito difícil avaliar desempenho.
Como não se tem essas competências individuais atreladas às organizacionais, a avaliação é feita de forma muito ampla. Vou dar um exemplo: você avalia um operador de caixa com uma competência ampla e genérica de liderança. O que você espera de liderança de um operador de caixa é diferente do que você espera de uma liderança de um gerente. Então os níveis de complexidade têm que estar descritos, porque, se não, você avalia algo que não diz muito do trabalho da pessoa e isso não vai ser efetivo. Você tem que ter o mapeamento bem detalhado para conseguir de fato avaliar. Então (tem-se) informações genéricas como proatividade e autonomia, mas o que é proatividade em um cargo x é diferente em outro cargo. São esses níveis de complexidade que possibilitam de fato identificar se a pessoa manifestou aquilo ou não, o que ela precisa (para manifestar), se ela manifestou por conta dela ou por conta das condições.
A gente vê que tem muitos problemas nas organizações brasileiras de condições e não de competências. Não é que o indivíduo não saiba fazer. Ele não tem as condições mínimas para realizar aquilo. Tanto de condições físicas, de materiais, como de suporte.
Você falou de descrição de cargo. Qual é exatamente a diferença entre isso e o mapeamento de competências?
A descrição de cargo, geralmente, não reflete a tríade da atividade: “o que é feito”, “como” e “para quê”. Então é muito simplificada. Geralmente são os requisitos mínimos do cargo: escolaridade, experiências anteriores, tempo na função. O mapeamento descreve: tem que fazer determinada tarefa, utilizar tal sistema para fazer isso, etc. Quando você faz essa descrição, consegue identificar de fato o que a pessoa faz e como ela faz. A descrição detalhada é necessária até para treinamentos.
Quando você não tem isso, como você faz um processo de recrutamento e seleção efetivo? Você não consegue nem perguntar que experiência anterior a pessoa já teve daquela atividade. Se ela já usou aquele sistema, se ela sabe para que serve aquilo, etc. Tudo isso é importante para identificar a fundo se ela já manifestou aquele comportamento anteriormente.
A entrevista de competência tem o objetivo de identificar (a competência) na experiência anterior. Se a pessoa não tem experiência de trabalho, por exemplo está saindo da faculdade, você pode transpor para um contexto não necessariamente de trabalho. É possível ver se, em projetos anteriores, ela teve autonomia, como foi trabalhar com mais pessoas, se teve algum problema para resolver, de quais estratégias lançou mão, se foram estratégias que foram bem-sucedidas ou não, etc. Conseguimos, com essas competências detalhadas, traçar tanto as estratégias de seleção, quanto uma entrevista comportamental, baseada nessas competências.
Pensando que o contexto muda e, hoje em dia, cada vez mais rápido, com que frequência seria interessante que uma organização renovasse as competências propostas?
A organização é dinâmica. As tarefas vão mudando? Então isso tem que ser atualizado. Fez uma junção de cargos? Isso tem que ser atualizado. Redistribuiu tarefas? Tem que ser atualizado. Por isso que a gente fala que a área que tem que fazer isso é a área de gestão de pessoas. É algo frequente.
O mapeamento de competências é uma tarefa que deve ser feita por gestão de pessoas e essa é uma área multiprofissional. Qual a diferença de o mapeamento ser feito por um psicólogo?
A diferença é o olhar. A gente entende algumas outras variáveis que são variáveis mais individuais. Por exemplo, estava dando aula hoje de teorias de motivação. Dificilmente administradores exploram variáveis de mediação entre o indivíduo e o desempenho. Muitos pensam que, se você garantir, por exemplo, recompensas financeiras, vai ter desempenho. E as pesquisas na área de psicologia mostram que não.
Existem variáveis que fazem mediação nesse processo e que interferem nele. Então, por exemplo, se você tem um gestor de um determinado estilo, se você tem políticas equitativas ou não, se a pessoa percebe que tem transparência, que tem uma justiça, a questão do comprometimento, da satisfação mudam. É necessário ter o domínio dessas variáveis que interferem nos processos individuais, que são os processos cognitivos e subjetivos. Isso é um olhar que os psicólogos têm.
Quando estamos no ambiente organizacional, conseguimos identificar essas variáveis que podem estar interferindo e falar para as pessoas “olha, nessa situação, isso pode estar interferindo, então é importante que nossa política e nossa prática leve isso em consideração”, “olha, será que está tendo suporte? Será que as pessoas estão satisfeitas?”. Conseguimos identificar essas variáveis que estudamos e fazer hipóteses do porquê elas podem ou não estar afetando aquelas relações do contexto.
Você falou brevemente de motivação. De que maneira o mapeamento pode influenciar na motivação do colaborador?
(Com o mapeamento,) o indivíduo tem mapeadas as expectativas para ele. Sabe quais são suas atividades, suas metas e o que é esperado dele. Por que isso é importante? Porque depois vai ser reconhecido se ele fez ou não (o que estava estipulado). Então ele sabe que vai ser avaliado e como vai ser avaliado. À medida em que as outras condições forem garantidas e quando for realizada a avaliação de desempenho, ele vai ter clareza se cumpriu ou não aquilo. O indivíduo saberá se vai ser promovido, por exemplo. As pesquisas mostram que, quando você tem essa definição, isso afeta a motivação, porque as pessoas sabem o que é esperado delas e sabem onde elas podem chegar. Então se querem fazer uma carreira de especialista ou se querem virar gestores, sabem se vão ter essa oportunidade ou não. Tudo isso fica claro para o indivíduo.
Existem outros benefícios do mapeamento para o trabalhador?
Além da motivação, existem benefícios na própria carreira, como mudança de remuneração, que, geralmente, está atrelado (à motivação), benefícios na sua avaliação de desempenho e também no dia-a-dia. Fica mais transparente, na relação com os colegas e com os gestores, o que é esperado do colaborador, se (o esperado) está sendo realizado ou não, o que é da responsabilidade dele e o que extrapola e por isso não foi feito, etc. Quando se tem um bom mapeamento de competências, ficam claros esses papéis. Isso acaba afetando também a saúde, porque se tem, de alguma forma, clareza das responsabilidades e dos papéis. Agora, se há sobrecarga, isso não depende do mapeamento. Depende de outras questões que extrapolam o mapeamento, mas que estão relacionadas.
Falamos um pouco da contribuição para o colaborador, mas em relação à organização, qual a contribuição do mapeamento de competências?
Para a empresa, seria o alinhamento das metas e dos objetivos organizacionais com os individuais. A partir disso, você consegue, por exemplo, propor ações para cada subsistema e criar condições para que, tanto os indivíduos, como as organizações respondam a demandas mais complexas do ambiente de trabalho.
O mapeamento de competências individuais ajuda, por exemplo, a contratar as pessoas, porque você faz um perfil baseado nessas competências. Ajuda também a identificar, no processo de seleção se elas estão alinhadas com os valores do dia-a-dia da organização, a fazer a gestão do desempenho, a identificar se aquele indivíduo está conseguindo manifestar uma determinada competência ou não, etc.
Quando se trabalha com um mapeamento de competências com complexidade, tem-se uma atuação em todos os subsistemas e você consegue identificar se o indivíduo está entregando o que é necessário ou não. Avaliando você pode redirecionar, pode fazer planos individuais de desenvolvimento e pode também identificar lacunas. (Pode identificar) o que ele não desenvolveu e precisaria desenvolver. Isso está atrelado com o subsistema de treinamento, desenvolvimento e educação, assim como também com o subsistema de remuneração, o tradicional plano de cargos e salários, e outros sistemas de recompensa que não só financeiros.
Quais dificuldades a empresa pode apresentar se não tiver um bom mapeamento de competências?
Primeiro, começa na entrada das pessoas na empresa. Há um desalinhamento entre o que se espera da pessoa que entra em relação ao que a pessoa vai encontrar, porque também não se tem claro o que a pessoa tem que executar. Seria necessário que, logo no começo do trabalho, alinhassem-se os interesses pessoais com os da empresa. Mas isso já não costuma acontecer nas empresas.
Segundo, não conseguir fazer uma boa gestão de desempenho, porque você não consegue ver se a pessoa entregou ou não a tarefa. Então não se consegue reconhecer aquilo e se pode-se dar um aumento para a pessoa ou não. Outra coisa, e que eu acho que também é bem importante para a área de POT e de gestão de pessoas, é reconhecer se você precisa treinar as pessoas. Se não se tem um bom mapeamento de competências, você faz uns treinamentos que não têm nada a ver com o que as pessoas precisam e gasta milhões com algo que não vai ser efetivo. Isso porque você não sabe o que as pessoas deveriam estar fazendo, então, não consegue avaliar se o que elas estão entregando está de acordo com aquilo. Percebe como está tudo interligado? Não tem como separar os subsistemas.
Você entra e não sabe o que se espera de você, como você vai saber se o que está entregando está indo bem ou não, ou o que precisa melhorar? E é isso que acontece muitas vezes. A pessoa não teve um acompanhamento e é mandada embora, mas nem teve a oportunidade de melhorar, porque não teve esse feedback. Ou fica e, seis meses depois, te falam “olha, não tá dando certo não, vocês contrataram errado, falei que não ia dar certo essa pessoa”, mas também não foi feito nenhum tipo de intervenção no sentido de “olha, continue assim, tá dando certo”, “olha, isso não funcionou”. Que seria a gestão mesmo do desempenho. Os processos estão interligados.
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Marina Greghi Sticca
Psicóloga (graduada pela Universidade Federal de São Carlos - 2005) e administradora (graduada pela Universidade Federal de Uberlândia - 2011), Marina atua atualmente como docente no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho.
Tem mestrado (2007) e doutorado (2012) em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de São Carlos na área de Trabalho, tecnologia e Organização.
É fundadora e coordenadora do Laboratório de Psicologia Organizacional e do Trabalho (LabPOT/USP) e participa do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Grupo de Trabalho de Psicologia Organizacional e do Trabalho na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia.
Além disso, foi editora associada da Revista Psicologia: Organizações e Trabalho de 2017 a 2019 e realiza pesquisas na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho, com ênfase em Psicologia do Trabalho.
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